segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Nós

Que pequeno nome tens
que nas letras que deténs
comporta caudaloso rio?

E teu cheiro carmim de fruta
faz de ti tão resoluta
que me envolve no seu brio?
 
Do amarelo que vestir detestas
restam-me os cabelos, que folhagem sazonal!
e do som destas pisadas folhas
tenho prazer qual teu sorriso outonal
e desejo que me acolhas
com tua voz de serestas:

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê.

Teu nome és meu verso
que o universo é pronome:
nós.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Balinhas

Eram dois meninos bem pequenos. O menino maior tinha oito anos e uma feia cicatriz que contornava a metade que era sua orelha esquerda. O menor tinha os olhos negros mais vívidos que uma criança de quatro anos podia ter. Ambos os meninos com as cabeças raspadas e as roupas surradas.
_ Estação Vila Oeste. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.
Vinham caminhando pelo vagão do metrô. Pareciam dois coroinhas numa missa de domingo com as mãos igualmente juntas a rezar. Recitavam em uníssono o verso decorado:
_ Moço, quer comprar balinha?
Um homem rudemente:
_ Não.
_ Moça, quer comprar balinha?
_ Lindinho, a tia não tem agora, tá bom?
_ Moça, quer comprar balinha?
_ Tô sem dinheiro agora, depois eu compro.
Perguntaram a cada passageiro, de pé ou assentado, se era do interesse deles comprar as balinhas. O rosto do menino menor estava cheio de marcas roxas e no maior haviam pequenas feridas ainda vermelhas.
_ Estação Gameleira.
Percebendo que em vão haviam oferecido a mercadoria, resolveram os meninos fazer uma pausa e tornarem-se crianças. Nada tendo vendido, abandonaram as balas e o pote de sorvete que receberia as moedas e começaram a correr divertidamente pelo vagão.
_ Estação Calafate.
Uma brincadeira de pique-pega. O menor era involuntariamente o pegador: era o menor. Corria bobo tentando alcançar o maior, que se esquivava lá e cá e fugia das apalpadelas do menor. Risos infantis enchiam o vagão de alegria. Eram duas da tarde de uma terça-feira e o fato de haver poucos passageiros entrando e saindo pelas portas era o combustível para a brincadeira ir adiante.
_ Estação Carlos Prates.
A mãe estava sentada bem à frente e olhava atentamente os filhos.
_ Menino, vem aqui agora, e traz seu irmão aqui.
Ela era uma mãe zelosa com o negócio e advertiu o menino maior com um apertão na orelha cortada.
_  Cês tão falando direito, fazendo cara de dó? Do jeito que eu falei pra falar? Hein? Já vamo descer e essa droga ainda cheia de bala. vai ficar aqui dentro e vai vendê isso. Entendeu, meu bem? Entendeu, meu filho?
E riu.
_ Estação Lagoinha. Acesso à Rodoviária.
_ Vem, - disse a mãe puxando o menino menor.
Atravessaram a porta mãe e filho mais novo, alcançando as escadas enquanto o menino maior chorava discretamente as dores do apertão. O choro durou pouco, menos que o suficiente. Não podia ser criança. Não agora, pois tinha trabalho a fazer. Em poucos segundos secou as lágrimas e continuou, desenvolvendo mais seu discurso:
_ Moço, cê quer comprar balinha? Tem de goma, com chicletes e drops.
_ Me dá três da azedinha.
_ Estação Central.
O menino maior fez todo o trajeto do metrô vendendo balas. Na última estação, desceu e começou o caminho contrário. Durante a volta pra casa,  passaram  pela sua cabeça poucos pensamentos. Não conhecia muita coisa além daquilo que fazia, afinal lia penosamente. Escola de pobre era surra e trabalho, segundo a mãe. Frequentava as aulas de manhã para receber o auxílio do governo.
Pensou em comida, no pique-pega e nas balas todas que conseguiu vender. Será que havia um lugar doce feito bala?
_ Estação Lagoinha. Acesso à Rodoviária.
O auto-falante anunciou sua estação. Saiu do trem, subiu as escadas e atravessou a longa passarela.
A alguns quilômetros dali jazia sua mãe numa calçada. Vinte e três tiros disparados. Quinze derrubaram a mãe tingindo de vermelho o asfalto e a porta do barraco. Oito balas desenhavam feia imagem no muro. Chegaram no local vizinhos, polícia, filho maior, ambulância e o rabecão. Uma mulher em desespero uivava a perda. Os dois filhos contemplavam a morte de longe enquanto o corpo da mãe se distanciava deles.
No velório um padre fala rapidamente boas palavras, asperge água sobre a mãe e encomenda a alma à Deus. Sem coroa de flores, num caixão doado pela funerária. Tinham que ser rápidos. Depois de algumas horas o caixão desceu, e os filhos, amparados por familiares, choraram pouco. Não era, novamente, o momento de serem crianças. Um gosto amargo veio a boca do menino mais velho.
No dia seguinte o sol ardia sem nuvens. Olhou o muro e ficou alguns instantes estudando o desenho que as balas formavam. Quando se aproximava bem parecia uma casquinha de sorvete, no entanto, ao se afastar, lembrava uma mulher gorda que tinha visto um dia no metrô. Contou ao irmão menor e eles riram.
Era a tarde de uma quinta-feira e o menino maior não podia chorar seu luto. Caminhou até o vagão repleto de doçuras para vender.
_ Estação Central.
O menino tinha oito anos e estava sozinho em seu labor. O irmão menor ia agora com o pai aos semáforos. Sua cicatriz ardia. Se não podia ser criança por enquanto, não podia também falar como uma.
_ Moço, quer comprar bala?
_ Estação Terminal Eldorado. Solicitamos a todos que desembarquem nesta estação.
O garoto pensou novamente em comida, no pique-pega e nas balas que ainda venderia durante a semana.
Pensou também em morte e na vida. A linha da vida continuaria e o menino não queria descer.