quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Migração


"Majestosa Monotonia" serviu ao meu desejo de escrita desde 2009, quando eu descobri que havia uma escrita minha, autoral, e que ela poderia ser compartilhada.

Neste blog publiquei minhas poesias, sobretudo, e alguns textos que hoje eu já não escreveria. Mas escrevi, e na linha do nosso tempo não há remendos. 

Por isso estou migrando. Migram, comigo, muitas poesias e alguns artigos passados para blogdoigu.wordpress.com.

O endereço é novo, mas a monotonia é a mesma – como se pudesse não ser.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Selo

Vi nossos postais como quem abre um sorriso pela primeira vez. Na estante empoeirada jaziam nossas primeiras últimas lembranças. Havia areia em meus olhos. Acordei na madrugada com os pés frios, descobertos. Nossa cama estava fria como se muitas águas nos roubassem o calor. 
Abri meus olhos devagar: eu tinha as pestanas carregadas com peso de mil chumbos. Tornei a fechar os olhos, querendo selá-los até a eternidade. Pisquei-os repetidamente para afastar as moscas volantes. Meus músculos, antes relaxados, começavam a ser contraídos e, assim, levantei-me da cama. Cocei a cabeça, prendi meu cabelo com o prendedor azul-marinho que facilmente encontrei na cômoda – o que não queria encontrar jamais. Meu cabelo ficou triste, assim preso. 
Meus verdes olhos, que segundo você eram de uma ressaca capitulesca, estavam profundos, fitos no reflexo do espelho. Me vi translúcida: como Narciso eu quis mergulhar – não para perder-me, mas para encontrar-te. 
Pensei nos seus braços, tocando minha pele, assim como eu o fazia agora, e alegrei-me, esperando seu retorno. Seu corpo fluido, corredeiras de afagos, beijos quedas-d’água.
Quando comemorávamos nossas primeiras bodas na praia, você me deu um prendedor azul-marinho e mergulhou. Após minutos, não havia espaço em seus pulmões. O mar o tinha invadido. Lua no céu, sua alma na terra, seu corpo no mar. Seu corpo fechado, carta enviada à terra. 
Foi então que desisti de mais sentir. Decidi: na terra não há mar. 
Meu bem, estas são as últimas palavras que escrevo. Peço que não me abandone. Meu amor, para sempre sê-lo.

sábado, 10 de outubro de 2015

Oração

Deus é bom, mas será que ele existe mesmo? esses sinais da natureza, eu sinto mas às vezes duvido, como pode não ter Deus olhando aquela Vivi, ele existe sim!, aquele noivo dela idiota, ele que vem pra ele ver, vem idiota!, cai pra mão idiota!, você não homem pra ela, frouxo, ia acabar com o desgraçado, filho de uma égua, é homem pra trair ela e ficar naquela pose de santo, por isso que eu tenho raiva de crente, mas sou cristão, mas critico cristão sim porque maioria não vive o que prega, eu sei que é difícil, Deus, mas tem gente que nem tenta, a fé não toca a realidade, quer só barulheira em igreja e dízimo pra encher bolso de pastor, não quer ser cristão, idiota!, Vivi é voluntária seu idiota, ela sim sabe o que é fé, ela encarna a teologia da graça, e ela com aquele cabelo voando, quando te vi passar fiquei paralisado, tremi até o chão como um terremoto no Japão, uma batedeira sem botão, foi assim me vi na sua mão, e eu e ela, que legal!, ia ser tão linda, ela de noiva branca, naquele sítio, podia ser só eu e ela, sem mais ninguém, eu tocando o acordeon e ela colocando aquele cabelo atrás da orelha, ai, meu Deus, como eu queria dar um beijo naquela boca dela agora, aquele corpo lindo, nossa, meu Deus, me perdoa, Santa Maria, Mãe de Deus, não quis pensar isso, Deus, me perdoa pelos meus pensamentos, se ela fosse solteira eu ia querer namorar ela, mas ia ser tão complicado, perdão, Deus, me ajude a lidar com meus pensamentos, amém, vamos pensar em outra coisa, lá, vamo lá, céu, que céu bonito, com arco-íris porque choveu, e aquele filme antigo do Mágico de Oz que tem a música Over the rainbow, tem a versão que a Luiza Possi fez também, a versão daquele havaiano é muito chata, ninguém aguenta, muito chata, meu Deus, a versão da Luiza Possi até que ficou legal além do arco-íris, pode ser que alguém veja em meus olhos o que eu não posso ver, someday i'll wish upon a star and wake up where the clouds are far behind me, eu tentando fazer isso e vem tudo isso igual um estouro de boiada ... ... ... e a Vivi adorava ver Pantanal, porque todo mundo falava que ela parecia a Juma, meio onça, aquela música tocando, eu tenho um cavalo preto, por nome de ventania, e nós ali naquele pantanal, oh, Deus, perdão, de novo, queria pensar outra coisa, antes ela não tivesse namorado o idiota, ele podia era morrer, ficou sabendo?, um raio matou o noivo da Vivi?, ia ser tão bom!, ai, ia ser ruim, coitado, credo, desejar mal é ruim, até pra gente ruim, olha só eu falando do cara e fazendo igual, que destino incerto o meu, de seminarista em fé, fé sem obras é morta, que desgraça ela lá e eu aqui, que bosta, a gente podia tá feliz, na verdade eu gosto é de você, nossa, ia ser tão bom, dançando o forró bem juntinho, ela enfermeira, vem cuidar de mim, que idiota!, você é muito idiota, eu que sou mesmo, coisa infantil, romantismo imbecil, caramba, vai se ferrar Vivi, vai não, Vivi, eu que não sei controlar, perdão, Deus, minha Nossa Senhora, a gente não sabe o que pensa, rogo-vos, minha mãe santíssima, me ajude, obrigado, Ave Maria, simplesmente obrigado, amém, não sei o que serei ou farei mas tudo a ti entregarei, Deus é bom, se fez o que eu sinto, é, sim, bom

domingo, 23 de agosto de 2015

Chegada

Maura foi heroína de nossa gente. Limpa, partiu sem conhecer a preguiça. Nasceu, branca nevada, filha do dia. Era filha de negro e de negra. Primeiro, o pai desconfiou traição. Ele, na certeza, bateu na mãe muitas vezes. Batia outras vezes pela dúvida. O barulho das chaves era um aviso. Silêncio. A mãe aguardava infeliz o seu retorno. Maura enxergava as sombras se atracando, a dança insana de mãos e pernas. Era a covarde encenação cotidiana: o pai, com o punho em riste, açoitava sua cativa. Uma vez, no Natal, a mãe cuspiu sangue. O pai fechava a porta com violência, sumindo por vários dias. A mãe se recompunha ao final, bamboleando até a cozinha, cantando canções de louvor. João 12:23 se cumpriria, ela tinha esperança. Ele há de vir. O Menino Jesus, deitado à mesa, foi testemunha do triste rito. Natais eram alegres. Era tempo de Maura ganhar boneca de outros usos. Foi criança que brincava na vida, no tempo entre os ofícios. Tinha vocação de limpeza desde a tenra idade. Trabalhava.
Maura veio de repente. Rompeu seu casulo maternal num setembro distante, Deus sabe onde. Chegou pobre, minguada, esquisita, de cara doente. Tinha os olhos errosos. Não era traição, era um castigo. Maura era doente, chorante, pobre de nem se ter dó. Estudava com dificuldade já que tinha os olhos errosos. Maura era a alegria da sala. Quando a menina entrava, o lugar se enchia de gargalhadas infantis. Podia uma menina ser tão feliz? Era satisfeita, ouvia bem baixinho. Não havia bem algum para ouvir, ela não havia de reclamar. A menina, quase surda, quase cega, calada. Ao fundo, grita-se leite azedo, albina, cotonete. Crianças são puras. Maura rabiscava seus cadernos, escrevendo letras confusas, pensando ansiosa no próximo Natal. 
O cômodo em que ela sobrevivia era bem menor do que a casa onde crescera. As paredes brancas manchadas. Faxinava o dia todo, sonhava no tempo entre os ofícios. A mãe tinha morrido há dois anos. Maura, a albina, não dava lugar à preguiça. Carecia de ter coragem. Trabalhou. Maura, a nunca esperada. Não teve namorados. Atravessou errada a rua na véspera de Natal. Não precisou esperar. Ônibus são como palavras sem freio. Motoristas entorpecidos de injetáveis não tem misericórdia em seus pés furiosos.
Ela estava ainda mais alva. Maura no caixão no meio do velório. Uns poucos assistiram à sua descida ao sepulcro. Todos se esqueceram de que ela não mais voltaria. E de que o corpo dela, mais tarde, seria devorado e absorvido pela terra. 
Maura tinha partido e somente Deus aguardava a sua chegada.

sábado, 21 de março de 2015

Entre viver e morrer

O silêncio é uma quebra
Da vida que emana som.
É o estado que celebra
O desacerto do tom.

Num discurso que eu faço
Ou quando toco acordeon
Se há, pois, o descompasso
Degenera-se o frisson.

Da existência um pedaço
As vozes vêm preencher:
Se situam no espaço
Entre viver e morrer.